Sacrifícios, renúncias e tristezas, caracterizaram a vida dos colonos blumenauenses na década 1850-1860. Somente o firme propósito de criarem para os seus descendentes um novo lar mais farto em uma nova pátria mais generosa, deu-lhes o ânimo e a perseverança indispensáveis para vencerem tantas dificuldades e aflições.
De início, deve-se salientar entre os motivos de maior sofrimento para os colonos, o trauma efetivo inerente ao emigrante. Por mais imperiosos que sejam os motivos que levam o indivíduo a emigrar, não se opera impunemente para a personalidade, o abandono da terra natal, o desprendimento dos velhos conhecidos e amigos, a rutura de arraigados hábitos e costumes.
A consequência natural e imediata da emigração, é o trauma psicológico profundo e aflitivo que martiriza o emigrante nos primeiros tempos e se manifesta em sua vida na nova terra, conforme as condições personalíssimas de cada um, pela tristeza, pela saudade, pelas atitudes anti-sociais de rebeldia e, por vezes, pelas perturbações psíquicas. No caso da emigração para Blumenau, os padecimentos dos colonos, oriundos de seus esforços de adaptação ao novo habitat ainda mais se agravavam porque, acostumados a vida de aldeias ou cidades européias, viam-se, de chofre, em plena mata virgem da região sub-tropical de um país que lhes era quase desconhecido. Não podiam ser mais completas, portanto, as modificações no estilo de vida do emigrante alemão que se destinava a Blumenau. E tais alterações estendiam-se dos hábitos alimentares, do tipo de habitação, do método de trabalho, até às atividades recreativas.
Um ligeiro retrospecto sobre o modo de vida dos primeiros colonos blumenauenses mostrará que a árdua tarefa de colonizar, exigiu daqueles humildes e anônimos pioneiros de civilização nas selvas marginais do Itajaí-açu, um elevado tributo de esforços, abnegação e tenacidade.
Em primeiro lugar, o clima demasiado quente no verão acarretava para o colono recém-chegado, algumas perturbações fisiológicas, tais como dores de cabeça, eczemas e sensação de fadiga. Mas, esses incômodos, como explicava o dr. Blumenau, passavam com brevidade, sobretudo se o colono adotava métodos de alimentação e de trabalhos adequados ao meio.
O rio, que era a via natural e única comunicação entre os diversos pontos habitados, tornava-se, por vezes, um obstáculo ao bom desenvolvimento da Colônia. As suas enchentes periódicas, não só destruíam o produto de trabalho de alguns meses, como punham em perigo a própria vida do colono.
A simples navegação do rio não era isenta de perigos para aqueles que não sabiam utilizar, com a necessária perícia, as canoas finas e compridas. Aliás, logo no começo do ano de 1852, o obituário da colônia se iniciava com a morte por afogamento no Itajaí, do carpinteiro Daniel Pfaffendorf. E por muitos anos, enquanto o Itajaí e seus afluentes foram os únicos meios de locomoção, a crônica de Blumenau registrou elevada percentagem de afogamentos.
A selva, que então cobria todo o vale, não era também um obstáculo fácil de vencer. A derrubada da mata para o preparo das primeiras roças ou construção de rancho primitivo, não raro causava acidentes, porque as copas das gigantescas árvores ligadas às vizinhas por fortes cipós, arrastavam na sua queda galhos da grossura de árvores e, por esse mesmo motivo, algumas vezes a direção da queda ocorria de modo diverso do previsto pelo corte. Um acidente dessa natureza, felizmente sem maior gravidade, ocorreu com o sábio Fritz Müller, que assim o narrou em uma de suas cartas para sua irmã Röschen.
“Ainda preciso que uma vez quasi perdi a vida no mato. Havíamos cortado árvores e estávamos partindo os galhos espalhados no chão. Encontrava-me entre os galhos de uma laranjeira, quando ouvi chamar o meu nome e vi que o palmito que Augusto estava cortando, caía em minha direção. Não pude fugir tão depressa e o tronco bateu na minha cabeça. Caí sangrando, no chão. Logo, porém, recuperei os sentidos e com compressas que fiz durante toda a tarde, melhorei bastante. Mas, ainda hoje, muito sol faz mal à minha cabeça. Cortar árvores aqui na mata, é muito perigoso, pois, muitas vezes, a direção da queda dos troncos cortados é desviada por cipós e outras plantas”.
Além dos perigos das derrubadas, a selva ocultava dois terríveis inimigos dos colonos: os índios e as feras.
Os índios foram, desde o princípio do estabelecimento colonial, o terror constante dos colonos. Pouco numerosos, mas astutos e destros em seus ataques, os senhores da floresta , que quasi sempre atacavam de surpresa, fizeram muitas vítimas. Aqueles imigrantes que se localizavam nos pontos extremos da colônia, viveram por muitos anos em contínuo sobressalto pelo fundado receio de saques e morticínios por parte dos selvícolas. A relação completa de seus ataques à zona colonial, estende-se, no tempo, desde 1852, data do primeiro assalto à propriedade do dr. Blumenau, na Velha, até quase aos nossos dias, quando se fez a pacificação do grupo remanescente de botocudos, que habitava, então, a zona do rio Plate.
A vida dos colonos durante os primeiros anos, foi perturbada ainda pelos ataques de animais perigosos: onças, cobras venenosas, etc. As cobras venenosas foram, sem dúvida, permanente e traiçoeira ameaça à vida dos colonos, porque naquela época não dispunham eles de eficientes recursos terapêuticos contra o envenenamento produzido por mordida de cobra. Aliás, é muito possível que um exame mais detido no obituário colonial venha a confirmar a tradição oral existente, de que foram numerosos e frequentes os casos de morte em consequência de picadas de cobra. Tão encontradiços, de fato, foram em Blumenau, esses perigosos ofídios, sobretudo os da espécie denominada “jararaca”, que um riacho situado no bairro da Velha conserva, ainda hoje o nome bastante expressivo de “Jarakenbach”, – evidente corruptela da palavra “jararaca”, seguida pelo designativo “bach” que, em língua alemã, significa “ribeirão”. É verdade que em consequência do desbravamento da mataria circundante, esses perigos, pouco a pouco, desapareceram. Mas, inicialmente, os colonos tiveram de suportar horas intermináveis de desespero, angústia e inquietação ante a ameaça das cobras e das feras. A propósito dos ataques de feras, Fritz Müller, que foi um autêntico colono blumenauense, escreveu naquela época o seguinte relato:
“Ultimamente, nossa vida teria decorrido muito calma, se não aparecesse algo que apavora toda a colônia a visita repetida de onças ao jaguares. Uma manhã, meu vizinho, que durante a noite um tigre, como aqui também denominam as onças, devorara seu cachorro. Não quis porém, logo duas noites após, apareceram mortos dois porcos de meu vizinho e, na manhã seguinte, encontramos pelo caminho uns rastos de animal, que devia ser muito grande e devia estar acompanhado por outro menor, do tamanho de um gato bem grande. Preparamos, logo, as espingardas, as armadilhas e guardamos bem os animais. A noite, depois de se ter notado o desaparecimento de um cachorro, um grito repentino fez acordar meu irmão August. Em companhia de S… , meu irmão foi ao chiqueiro e viu que duas táboas do tecto estavam separadas e no chão um porco morto. Pelas marcas de sangue, que a onça já erguera a sua presa até ao tecto. Ambos, então, pegaram o animal morto e o amarraram a um tronco de árvore, próximo à casa. Mal se postaram, armados de espingardas, atrás da janela da casa, quando reapareceu a onça, que foi recebida com dois tiros. Por um pequeno instante a fera estacou. Depois fugiu aos saltos para a mata. Na manhã seguinte, seguimos, por muito tempo, as marcas de sangue, mas, desde então, a fera não mais apareceu”.
Os hábitos alimentares dos colonos da margem do Itajaí-açu, igualmente, diferiam daqueles a que estavam acostumados na velha Europa. O pão de trigo ou de centeio, a batata inglesa e os legumes diversos, constituiam, na Europa, a base normal de alimentação do camponês ou do citadino. Em Blumenau, porém, o trigo e o centeio foram substituídos pela farinha de milho ou de mandioca, a batata inglesa, pelo aipim ou pelo palmito, os legumes, só quando as roças não eram prejudicadas pelas enchentes ou pelas geadas, apareciam à mesa dos colonos. Leite, ovos, queijo, linguiça e carne fresca, foram luxos que só após alguns anos de trabalhos incessantes e com o desenvolvimento da lavoura e da pecuária, passaram a integrar o cardápio habitual do colono. Sobre a alimentação dos colonos, nessa época, uma publicação intitulada “Contos de um velho colono blumenauense”, publicada no almanaque “Volksbote” (Mensageiro do povo) para o ano de 1903, informa com bastante senso de humor e em linguagem pitoresca, o seguinte:
“Quase não havia cereais, a não ser o feijão, plantas bulbosas, das quais agora há tanta abundância, foram importados aos poucos, com dificuldade e muitas despesas das colônias mais antigas, de outras províncias e até da Europa. Verificou-se o mesmo fato, com as mudas e sementes de legumes e flores. Açúcar, farinha de trigo e arroz, eram contados entre os artigos de luxo. Se não havia farinha de mandioca, palmito com feijão. Quando escasseava o fubá de milho, o pão de farinha de mandioca. É verdade que muitos faziam caretas ao e, de fato, custava a ser tragado. O pão de mandioca se era muito assado ficava duro e seco; se porém, não se deixava bastante, o recheio ficava húmido e crú. Com o tempo, todos se acostumavam, mas sentiam falta do pão de centeio”.
Mas, os pioneiros da colonização de Blumenau se sujeitaram a muitos outros desconfortos. O tipo primitivo da casa do colono deixava muito a desejar. As palmeiras forneciam quase toda a matéria prima necessária à confecção de casa primitiva; os troncos partidos e ligados por cipós formavam as paredes; as folhas entrelaçadas e amarradas às ripas, serviam de tecto. Uma armação de paus e cipós encostada a uma das paredes, substituia o leito. Troncos de árvores e caixodes, supriam a falta de cadeiras e mesas. A iluminação da casa, durante a noite, era, às vezes, um problema de difícil solução para o colono. O azeite de baleia, de odor insuportável, ou a vela de sebo, eram os meios comuns de iluminação. Mas, quando no único armazém da Colônia se esgotava o estóque de azeite de baleia e velas de sebo, os colonos passavam mal. Uns conseguiam um velho tronco de aribá, cujas lascas forneciam ótima iluminação. Outros, se estavam em pleno verão, improvisavam uma lâmpada verdadeiramente original; apanhavam muitos vagalumes e os prendiam sob um copo virado. Mas; a maioria, por certo, ficava na escuridão, o que podia não ser agradável, mas era, sem dúvida, muito prático.
Na primeira década da história de Blumenau, os colonos não tiveram ao menos, o conforto espiritual da prática constante de seus cultos religiosos. Nos primeiros dois anos, o dr. Blumenau, de quando em quando, fazia preleções aos colonos, sobre temas de moral cristã. Já em 1853 o professor que aqui chegara, Fernando Ostermann, fazia prédicas religiosas, mas somente nos dias de festa do calendário cristão. Como não havia igreja, os ofícios eram celebrados num pequeno compartimento da única hospedaria então existente, onde o dr. Blumenau instalara o seu escritório. Só a partir de 1857, com a chegada do pastor Oswald Hesse, puderam os colonos protestantes contar com a assistência religiosa mais contínua. Ainda pior era a situação dos poucos católicos romanos moradores na Colônia. Estes tinham de percorrer cerca de duas
léguas de maus caminhos, até a igreja de São Pedro Apóstolo, em Gaspar, para assistirem à sagrada missa. Somente em 1876, com a designação do padre José Maria Jacobs para vigário residente, os católicos de Blumenau passaram a ter completa e constante assistência religiosa.
Eram, também, escassas as recreações de que os primeiros colonos podiam usufruir. A população pequena, isolada na selva e a necessidade de conjugarem seus esforços para vencerem as dificuldades comuns, originavam uma espécie de sociabilidade mais íntima e ininterrupta entre os colonos. Aos domingos, conta o velho Colono Blumenauense, as famílias se reuniam nessa ou naquela casa, para comentar os acontecimentos da semana, as alegrias e mágoa da vida do colono na selva. As vezes, alguém trazia um livro para ser lido em voz alta e cujo assunto era analisado em todos os pormenores. Pode-se, pois, afirmar que foram as palestras entre vizinhos e companheiros, as únicas formas de recreação dos colonos blumenauenses nos primeiros anos da vida colonial. As formas mais genuinas de cultura germânica, as associações de tiro ao alvo, ginástica, canto orfeônico, representação teatral e jogo de boliche, só mais tarde, com o começo da urbanização da Colônia, começaram a surgir em Blumenau.
Data de 2 de Dezembro de 1859, a organização da primeira sociedade de atiradores em Blumenau, que reviveu esse medieval festejo popular germânico, com a instituição do “rei do pássaro”. Transposto para a mata virgem, esse folguedo conservou todos os seus traços originários. Começava a festa pelo toque de alvorada, dado por tiros de morteiros. Formava-se o desfile dos atiradores, em coluna por dois, que marchava pelas ruas ornamentadas com flores e folhas. Em primeiro lugar, os atiradores iam buscar os “reis” das festas anteriores e, em seguida, rumavam para a sede do clube, onde davam início às competições de tiro ao alvo e ao “pássaro”. Um baile, em que moços e velhos voltejavam ao compasso de Rheinlânder, Schottisch, Ländler e quadrilha suéca, encerrava a festa. Explica-se, aliás, com facilidade, que tenha sido a sociedade de atiradores a primeira forma de recreação revivida na Colônia, porque era de todos os traços da cultura recreativa germânica, aquela que as condições do meio colonial mais favoreciam. As demais formas associativas, como as sociedades de cantores, de ginástica e de representação teatral, só se organizaram muito posteriormente. Uma sociedade cultural, o “Kulturverein “, que tinha por objetivo o desenvolvimento da lavoura e da pecuária colonial pelo intercâmbio de conhecimento e experiência adquiridas pelos colonos, também somente em 1863 pôde ser fundada pelo dr. Blumenau.
Até os noivados e casamentos dos colonos faziam-se, então, por uma maneira deveras sui-generis. Pelas listas de novos imigrantes, que a direção da Colônia recebia antes da chegada do navio em que eles viajavam, os homens solteiros ficavam sabendo quantas moças solteiras ou viúvas estavam prestes a chegar. Separavam-se, então, entre os colonos solteiros ou viúvos, um número igual de pretendentes ao matrimônio. Procedia-se, em seguida, para cada nome de moça, o sorteio de um dos pretendentes. É claro que esse processo de escolha por sorte, não chegava jamais ao conhecimento das futuras companheiras dos colonos. Quando o navio ancorava em Itajaí, São Francisco ou Desterro, os pretendentes iam a bordo, a pretexto de comprar mantimentos. Nesta ocasião, em geral com o auxílio do comandante do navio, era fácil a cada colono identificar entre as recém-vindas, aquela que lhe fora sorteada. Começavam, então, os idílios e todos sem exceção, num gesto de galanteria interessada, procuravam demonstrar às companheiras que eram vítimas de uma verdadeira paixão à primeira vista. Às vezes. informa ainda o Velho Colono Blumenauense, acontecia que a um homem mais velho a sorte destinava uma mocinha, ou ao contrário, uma mulher mais idosa era sorteada para um adolescente, mas ninguém se rebelava. Efetuado o sorteio, não havia possibilidade de trocas. Caso, porém os pares não chegassem a um bom entendimento, o que só excepcionalmente ocorria, então ficavam ambos livres de adiarem seus projetos matrimoniais. Diante dos hábitos modernos, esse sistema atinge as raias do ridículo e do absurdo. Não se pode negar, porém, que ele foi um fator poderoso de harmonia entre os colonos, harmonia de que muito eles careciam para vencerem as dificuldades comuns da vida na selva.
Fonte
O texto acima, faz parte do livro “Pequena história da colonização de Blumenau 1850 – 1883“, de Paulo Malta Ferraz e publicado pela Casa Dr. Blumenau. O mesmo foi republicado na revista Blumenau em Cadernos de abril de 1976 que pode ser acessada no website da Hemeroteca Catarinense.
Com esse pequeno fragmento do livro, é possível ter uma ideia de como foi difícil a vida de nossos antepassados.
As imagens apresentadas são apenas ilustração.